Fomos encontrar uma terceira companhia. Erramos a estação como quem erra o sangue de veia, juntos como poucas vezes. Naquele instante, parei de ver o mundo. Monocromática, preta de pregas a saia e branca de pretos traços a camiseta, coloria-se levemente com uma fina blusinha branca de listas rojas y negras**. Coisa de menininha. Sapatinho de boneca preto, enfeitada de meia arco-íris. Cabelos de psicodélico cobre. Desencontramos. Fomos para a estação Paraíso. Maltrapilho por dentro, bem arrumado por fora. Abarrotada, descemos a cumprir no pé. Dia de sol desagradável. Na saída, surpreendidos por morteiro que podia machucar um: algum idiota que não aceitava o arco-íris irradiante do dia que ela e a multidão viviam.
Em meio às monstruosidades daquela tarde exageradamente clara, redescobri como atingir a Paulista. Seguimos pela Avenida tomada de seres fantasmais, espectros insolentes do submundo, que emergiam para tomar o Mundo-do-sol como num apoteótico e carnavalesco dia das Bruxas. Ensurdecidos, íamos por entre os carros alegóricos que torciam a realidade de concreto e me faziam odiar a liberdade da infâmia. Fluíamos no coração econômico da América Latina, de trio elétrico em trio elétrico, transformando-o no visor de um rádio antigo, e no próprio rádio. Ela, ponteiro a passar as estações; depois, bailarina de caixa de música. Eu, melancolia. Com a sainha nos joelhos e o sorriso nos lábios, aqueles olhos enverdecidos me fitavam parado e aborrecido com uma Coca-cola na mão. Em meio à turbamulta, muchedumbre de grotescos gestos, sentia o peito comprimir ante à força das caixas monumentais.
Atravessamos a Paulista. Cansados sentamos. Ela brincava com uma camisinha feita bexiga (jamais confessarei quem encheu) na qual irritava esbarrar. No bolso, ingressos da Educação Sentimental do Vampiro. Dalton Trevisan para as tortuosas e perturbadoras horas futuras. Começaram a se movimentar os carros. Seguimos o alegórico-estação-de-rádio escolhido. Descemos a Consolação aos poucos. Tudo girava, contorcia, efeminava e desroupava sem sentido ao meu redor. Inferno, beirava e se atirava ao ridículo. Quieto, movendo o necessário para acompanhar minha dançarina, pensava em quanto aquele espetáculo não era gay. Procurava inutilmente na multidão o refinamento, a elegância e o estilo. Só encontrava o estereótipo, a zorra e a educação – esbarrões aos montes, nenhuma briga – festa de ogros e Feras. Minoria arrasadora, converti-me em sexo estranho, coisa grotesca, heterossexual.
Ela beijara demoradamente uma menina. Recusei veementemente o rapaz. Cumprido o papel de cordeiro sacrificial, coroar a noite com o Vampiro. Surpreendentemente, o teor da peça era ainda pior. Se algo havia de ridículo – e Trevisan, na pele de tão talentosos atores, sabia tornar ridículo o terrível –, havia ainda mais de perturbador. Dario insepulto e a vela sob a chuva fina, a menina estuprada, a puta banguela, a mulher que mata o marido violento. A voz angustiada da atora (sic) sulista. Perturbado, levei minha dançarina até em casa. Preferi esperar intermináveis horas no escuro terrífico daquela noite assustadora o ônibus no ponto vazio – estiquei o braço.
* Muchedumbre: multidão ** vermelhas e pretas
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