Numa rua minúscula e quieta e curva e côncava, de asfalto cinza, rua Professora Bem-vinda Aparecida de Abreu Leme, minha casa. Do lado esquerdo do prédio branco e baixo de quatro andares, um estacionamento. Do lado direito, um gramadinho atrás das grades de uma construção silenciosa. No outro lado da rua, a casa do Luís. E outras coisas sem importância. Um estacionamentozinho para poucos carros se adiantava ao meu prédio branco e baixo, quase sempre quase vazio.
A porta do prédio foi à chave, antes de ser automática. A porta do prédio tinha um recuo, abrigo da chuva, lugar de criança sentar e dar o primeiro beijo. Logo ali ao lado, direito, a janela gradeada, ampla e cortinada de Luciana, loirinha eu-dela, geniosa, bem no térreo. Éramos namorados. Só a empregada dela sabia. Com certeza, só a empregada. Dançava pra mim ao som da Xuxa no rádio-gravador preto, de baiano da minha mãe. O mesmo gravador que serviu de sonoplastia à peça que Natália, Nara e eu apresentamos ao prédio, num cenário horripilante duma casa de cortinas. Reproduzia a porta rangendo daquele armário branco, que por si só já era assustador, na fita cassete que o Luís tão gentilmente cedeu. Apaixonado desejo precoce de mergulhar no oculto.
E por falar nisso, do outro lado da entrada, uma portinhola, uma escada para baixo e a casa da bruxa. Havia morrido, mas deixara um feitiço que a amarrara ao mundo dos vivos. Deixara um grande osso seu sob o tanque de lavar roupas, que ficava no quintal. Não avancei mais. Nem ninguém. Não me acreditaram. A casa, como sempre, continua vazia; o osso, insepulto. No extremo canto esquerdo, ladeando o quintal dela, um corredorzinho que podia passar um homem, dava acesso ao pátio interior. Dele, entrevia-se a cozinha, através do vitrô maltratado pelo tempo.
Eu morava no fim do pátio, na última janela do último andar, no extremo oposto da casa de Luciana. A minha janela era branca, de levantar, madeira grossa, composta por dezesseis retângulos de vidro, quatro a quatro. O quarto era quadrado, com uma cama grande, onde dormíamos eu e meu pai. Mamãe na sala. Certa noite tempestatesca, pela intuição sempre pronta, da queda do teto de um bloco de gesso escapara papai. Machucara um pouco a perna, a mesma que jogava futebol comigo, provavelmente frustrado ao perceber que o filho não nascera pra'quilo. A mesma perna do acidente que lhe daria um pino de platina num tombo absurdo provocado por uma ridícula poça de óleo de um posto de gasolina.
Seu filho, fraco e falante. Ele, na juventude, hombre fuerte y valiente. Brigão de sangue quente. Minha mãe fez dele cordeirinho. Certa vez, quando me disse que devíamos ir embora, culpando um cachorro, eu disse que chamasse a mamãe: – Ela não tem medo. Que nem tia Ana, um muque de derrubar boi brabo. Que nem meu vô. Mas pra fazer justiça, foi meu pai quem livrou tia Ana dum tipo que não queria deixar ela ir. Bateu na porta e de um soco deixou o canalha inconsciente todo o tempo de recolher as malas e sair porta afora. Ela morou em casa. Meio castelhano, cresci há quatro quadras do metrô.
E quatro anos é a idade da garupa na moto, indo pra creche. Tinha um capacete verde, de viseira de garrafa de guaraná. Sob um noite de chuva, há um quadra de casa, na rua de paralelepípedos, encurralados os três por uma kombi, tombamos. Queda. O capacete partiu. A casa ao lado me deu um copo de água com açúcar. Eu chorava. Voltamos. A cama do quarto. Café-com-leite, como sempre e sempre, ao acordar. O corredor (adoro corredores). O banheiro onde fazia meus mergulhos no grande barril. A sala. O rádio. O aquário em frente, porém afastado, da janela. Os peixes espada, maestria dos meus pais. Os suicidas. Os da maternidade. À noite, apagava a luz para deixá-los dormir, cansados de ir e vir. De frente para o corredor, a porta da rua, cuja tranca trancava sem chave e sempre me deixava do lado de fora. Triste, serviu pra ensinar que existia o vizinho, hábito que cultivei.
Simples, educado e gentil, sempre tive todas as portas abertas, exceto as dos corações feminis. Luciana foi embora. No mesmo recuo da entrada do prédio, vi sua partida. Sem beijo, sem nada. Conheci Natália, mas justificava que ainda namorava a ausente. Natália me ensinou a gostar de arte. Pai artista plástico. Ela também, é claro. Criamos jogos, jogamos. Foi embora. Fui embora. No dia da mudança, quis trazer um gatinho sarnento. Não pude. Mas trouxe um sentimento carente: de gente, de bicho, de rua, de amor. Agora, sentado à frente da tela do computador, procuro no meu quarto, da nova nova casa, tão sonhado, alguma poeira do concreto dos pátios e da rua. Alguma casca da tinta branca que banhava o interior da minha casa da infância.
Nenhum comentário:
Postar um comentário